Ela sofria. Ela sempre teve o sonho de ser uma surfista e cavalgar as ondas; de usar um biquíni e ser bonita como as outras. E claro, que alguém a amasse. Queria ser forte, poderosa. Queria ser um dragão. Ela precisava de adrenalina, tinha fome disso e fazia coisas que apontavam nesse sentido. Tinha montes de amigos, mas também tinha inimigos. Ela parecia feliz, tinha o seu amor do seu lado e tinha um humor sarcástico. Ela rodeava-se de amigos e juntos praticavam actividades, como skating, ciclismo, música ou dança. Mas ela não era feliz. Por detrás da aparente alegria, ela achava-se fraca, não se achava bonita e não sentia que gostassem dela realmente. Não podia confiar em toda a gente, pois nem todos que se aproximavam dela queriam o bem dela. Uma rapariga que se dizia sua amiga, revelou-se ser falsa. Isso foi um golpe duro, pois essa rapariga era para ela o mais próximo que tinha de melhor amiga. Ela tinha sido rejeitada no amor também, apesar de ser um amor correspondido e ele também a amar, ele teve que dizer não devido a circunstâncias temporais. Ele amava-a, mas não podia. Mas ela não sabia que o amor era correspondido. Ela tinha pesadelos frequentes com as pessoas que amava, como ver a sua paixão morrer atropelado e vê-lo cheio de sangue no meio da estrada. Acordava em pânico, mas sua gata aconchegava-a, acalmando-a logo. Uma criatura sinistra vinda do mundo surreal, do inconsciente, apareceu. Inicialmente era apenas uma voz, um pensamento. “És feia. Não és forte o suficiente.” Mas depois este monstro começou a aparecer em vários sítios, no espelho, nas fotografias e em qualquer reflexo. O que o Monstro no Espelho dizia era cada vez mais truculento e macabro. “Devias era morrer. Estás horrível, como é que alguém vai olhar para ti? És tão fraca, achas que alguma coisa que faças vale a pena?” Então o Monstro sugeriu um pacto com ela. Visto que ela não tinha controlo ou poder na sua vida, ele dava-lhe controlo e poder. Ela seria poderosa e bela. Em troca ela vendia a sua adrenalina. Ela aceitou. Ele dizia para ela comer menos e assim ela fazia. Ele dizia para ela aguentar a respiração debaixo de água o mais tempo possível e assim ela fazia. Ele dizia para ela correr até à exaustão e assim ela fazia. Com o tempo o Monstro no Espelho começou a pedir desafios mais difíceis, como saltar uma refeição. Ela não sentia medo! Ela sentia controlo e poder pela primeira vez na sua vida! Um dragão! Mas o Monstro enganou-a, a entidade não se alimentava apenas da sua adrenalina, mas também da sua dopamina, da sua serotonina e da sua endorfina. O Monstro sustentava-se das suas emoções. Da sua alegria e amor. Do seu medo e tristeza. Quando ela cumpria um desafio, o Monstro em vez de elogiá-la e dizer que ela fez bem e é forte e bela, a criatura insultava-a e dizia que ela não fez o suficiente e ainda é fraca e feia. O Monstro através do seu espelho mostrava-lhe o seu mundo sinistro e abjecto onde toda a gente é perfeita, toda a gente menos, claro, eles os dois; a criatura dizia que ela era um monstro igual a ele. E que ela não se ia transformar numa princesa por encontrar o amor e ser amada incondicionalmente. O ser afasto-a dos seus amigos. Ela estava entre os seus amigos e era como estivesse sozinha. Ela foi-se desvanecendo cada dia que passasse, ao ponto de ficar invisível aos olhos dos outros. Ela foi-se embora do seu círculo de amigos sem dizer nada a ninguém e ninguém reparava. Até a paixão da sua vida parecia-lhe distante, ela tentou tocar nas costas dele antes de se ir embora, como se tivesse a dizer: “Olha estou aqui, ama-me, tu nem notas que me vou embora.” Chorou. Deixou de frequentar os sítios que gostava e onde se sentia feliz. Ela estava agora agrilhoada no quarto escuro do Monstro de onde não saía. Ela já não sentia nada, nem alegria ou tristeza. Nada. Nem medo. Apenas sentia um vazio enorme no lugar onde estava o seu coração. O Monstro para provar que ela ainda não era forte e bela, apesar de ela cumprir os desafios todos como comer todos os dias apenas frutas, mostrava-lhe através do espelho ou das fotografias uma ilusão que ainda não era “perfeita”. Mas depois foi pior, o Monstro para provar que ela iria precisar dele para sempre, mostrou-lhe a sua real aparência. Ela era agora uma sombra daquilo que era, esquelética, frágil. O Monstro mentiu, ela não era forte, nem tinha poder ou controlo. Era mais fraca do que era antes, e era controlada pela criatura asquerosa, esta sim, tinha o poder todo. Ela agora via o olhar aterrador e de pena que todos olhavam para ela. Incluindo as pessoas que ela mais amava, pois esse sentimento, amor, o Monstro nunca lhe roubou realmente, a criatura não precisa de amor, pois é um ente negro desprovido desse sentimento. Ela ficou com tanta vergonha que se escondeu para longe de olhares alheios. Ela não conseguia ver o olhar de angústia das pessoas à sua volta. O Monstro tinha um último desafio, um que pode levar à morte, mas se ela ganhar, a criatura deixa-a em paz. O sonho dela sempre foi ser surfista ou nadadora profissional, mas não sabia nadar. Então o Monstro propôs que ela fosse à piscina e nadasse de uma ponta à outra, da zona onde se tem pé até à zona onde não se tem pé; apesar de ela não saber nadar, ela aceitou. Ela ia conseguir. Ela ia conseguir vencer o demónio. Um demónio que representava a acédia, a ataraxia. Não muito diferente do demónio bíblico Belfegor, o Demónio da Acédia, um dos sete Príncipes do Inferno, que representavam os sete pecados capitais: Soberba, ira, luxúria ou lascívia, gula, inveja, avareza e acédia. Ela entrou na piscina, a água era gelada e muito. Mas ela não queria saber pois ela ia conseguir vencer e ser perfeita. Ela ia sair das águas negríssimas como um belíssimo cisne. Ela nadou, nadou até ficar sem pé, mas não ia parar. A água estava tão gelada. Ela sentiu um sentimento que não sentia há muito tempo, medo. Não parou. Continuou. Os amigos e familiares diziam: “Mas ela vai para a parte funda, ela não sabe nadar!?” Todos gritavam para ela parar e para se agarrar às cordas. Ela determinada continuou e nadou, nadou e nadou. Nadou. Sem nunca se agarrar às cordas. O Monstro apareceu e agarrou-a para o fundo da piscina. Ela estrebuchava em pânico e tentou livrar-se dos pseudópodes da criatura, um plasmódio negro, protoplasmático, anoftálmico e amorfo com uma bocarra com fileiras de dentes serrilhados. Ela não ia morrer, ela ia vencer. Ela pugnou a entidade no ambiente subaquático da piscina. O demónio era horripilante mas ia ser vencido. Ela pelejou o ser até chorar. Ela agarrou-se às cordas, mas o Monstro puxava-a para o fundo, o abismo. A água gélida entrava-lhe pela boca, narinas e tapava-lhe os olhos. Ela estava a ser atacada e não conseguia ver de onde; mas conseguia sentir! Várias mãos apareceram vindas de uma luz que ela via sobre as águas truculentas. Ela tentou agarrar uma das mãos, falhou. Sentiu uma dor muito forte no coração. “Irei morrer?”, pensou. Ela tentou novamente agarrar as mãos adjuvantes. Conseguiu! Ela emergiu, não como um cisne, porque a perfeição não existe, mas como um dragão intrépido. Ela foi guiada para cima das cordas e depois para fora das malditas e cruéis águas. Ficou abrigada sob a toalha quentinha. Tremia muitíssimo, sentia tanto frio que até sentia os ossos rachados. O Monstro ainda espreitava no fundo da piscina, observando. Ela foi levada para longe do Monstro, ainda abalada e aterrorizada. Mas conseguiu! Meses depois ela voltou a ver a pessoa que amava e viu o seu olhar triste e apaixonado ao revê-la. O Monstro tirou-lhe tudo, mas não ia tirar-lhe isto. O Monstro não ia roubar-lhe o seu amor. Ela ia renascer das cinzas como uma Fénix. Ela ia amar e ser amada. “A nossa história não pode acabar assim.” E não acabou. Descobriu que o amor que sentia por aquele rapaz que conheceu na catequese; era correspondido. Ela enfrentou o Monstro e disse não precisar mais dele, pois tinha algo que ele não tinha, amor. Pegou no espelho nefasto e mandou-o para o chão, estilhaçando-se em mil cacos. “Queres saber como me senti nestes últimos meses?” Ela atravessou a sua mão dentro do corpo protoplasmático e amorfo do Monstro no Espelho e arrancou-lhe o seu coração sanguinolento. “Sem coração.” E nesse momento ela esmagou o coração do Monstro, saindo apenas cinza da sua mão. O Monstro em agonia começou a urrar e a desvanecer em cinza. A cinza que antes constituía o corpo do Monstro voou com o vento. A única coisa que restou do Monstro; foi a sua voz, mas essa voz foi diminuindo de tom até desaparecer completamente. Um crocitar foi ouvido. Ela era livre e renascida como uma Fénix. Ela voltou a ver o seu amor. Não era perfeita, nem era feia ou bela. Mas era forte, ela sobreviveu ao Monstro. Voltou a ter a sua aparência normal que tinha antes. Era isso que importava, ser normal, desde que fosse amada, tinha tudo. Tudo ou nada? Ela escolheu tudo. Ela viu a sua paixão descer a rampa alva e pedregosa na sua direcção e os seus olhares de felicidade e alegria, encontraram-se. “Eu acho que te amo...” Era isso que precisava. Amor. Eles sorriram e abraçaram-se. A nossa história não pode acabar assim. E não acabou. Pois as grandes histórias de amor, como a de Romeu e Julieta, nunca acabam, elas são palavras e memórias eternas, eternas como a Fénix que renasce das cinzas depois de morrer. Pois todos morremos um pouco todos os dias e renascemos das cinzas no dia seguinte como a Fénix.
FIM
Fernando
Emanuel Pinheiro, Quinta do Conde, 17 de Janeiro de 2021
Comentários
Enviar um comentário